Reforma e contrarreforma trabalhista
Normalmente, quando falamos em reforma, pensamos que seja algo para melhorar, arrumar, solucionar algum problema. Políticas reformistas ocorreram no Brasil e no mundo ao longo do tempo e muitas delas foram aplicadas para frear o processo revolucionário. O saldo destas políticas, por um lado podem implicar em refluxo na luta de classes, mas por outro acabam por introduzir determinados direitos sociais, como são os direitos trabalhistas.
Por isso, o direito do trabalho ou os direitos trabalhistas podem ser compreendidos sob duas perspectivas: representam sim o resultado de lutas históricas da classe trabalhadora, mas também existem para regulamentar e manter uma relação de exploração, que é a relação entre o capital e o trabalho.
Reformas na legislação trabalhista foram realizadas desde o início do Século 20 (limitação da jornada de trabalho, salário mínimo, férias, décimo terceiro salário etc.). Mas o que presenciamos no último período é um processo de contrarreforma, que implica, sobretudo, na supressão daqueles direitos conquistados nos últimos cem anos.
Na biografia de Assis Chateaubriand escrita por Fernando Morais “Chatô, o Rei do Brasil”, há uma passagem em que Getúlio Vargas chama o magnata das comunicações para que este convidasse os empresários mais influentes da época, para uma exposição sobre as mudanças trabalhistas que pretendia implementar. Mas não obteve apoio dos empresários. Conta-se, que ao sair da reunião, Vargas comentou irritado com seu ajudante de ordens: “Estou tentando salvar esses burgueses burros e eles não entenderam”.
A burguesia nativa, herdeira do modo de produção escravista, de fato não estava preparada para lidar com a ameaça que a circundava, o movimento operário. Desde o início do século 20 os trabalhadores urbanos, especialmente de São Paulo, iniciavam um processo de organização. Após a abolição da escravidão, uma grande quantidade de imigrantes europeus chegava ao Brasil, entre eles muitos operários influenciados pelos movimentos anarquistas e comunistas já difundidos na Europa. Sob inspiração anarquista, em 1906 é criada a Central Obreira do Brasil – COB, primeira central sindical.
Nos anos seguintes, em razão dos baixos salários e das péssimas condições de trabalho, greves eclodem nos primeiros centros industriais do Brasil, até que em 1917 é deflagrada a primeira e maior greve geral da história do país.
A Primeira Guerra Mundial fez com que o Brasil destinasse boa parte de sua produção de gêneros alimentícios para os países da entente. Com isso os preços dispararam no mercado interno enquanto os salários ficaram estagnados. Isso, aliado às más condições de trabalho, contribuiu para que várias paralisações ocorressem nas indústrias paulistas. Mas, em 9 de julho de 1917, após o assassinato do jovem operário espanhol José Martinez pela cavalaria do governo de São Paulo, o movimento tomou imensas proporções.
O funeral de José Martinez tomou as ruas da capital e três dias após 70 mil trabalhadores cruzavam os braços. São Paulo ficou sob controle dos trabalhadores e a greve se alastra para o Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Obviamente a repressão foi brutal, mas os trabalhadores passavam a partir de então a tomar a verdadeira consciência de classe. Isso era intolerável para a burguesia e seu governo.
Parte das reivindicações da greve foram atendidas. Em 1918, outra greve geral parou a capital do Brasil, Rio de Janeiro. A vitória dos trabalhadores na Rússia, com a Revolução de 1917, também animava os trabalhadores brasileiros e suas organizações.
Do outro lado da barricada, a tosca burguesia e seu governo agiam com truculência. Washington Luís, Secretário de Segurança Pública de São Paulo em 1917 e depois Presidente da República, costumava dizer que problemas sociais devem ser resolvidos pela polícia. A associação industrial de São Paulo, embrião da FIESP, diante da eminência da aprovação de um decreto de 1926 que concedia aos trabalhadores férias de 15 dias, enviou memorando ao presidente, com trechos que destacam bem sua tacanhez:
“que fará um trabalhador braçal durante 15 dias de ócio? Ele não tem o culto do lar, como ocorre nos países de padrão de vida elevado. Para nosso proletariado, para o geral de nosso povo, o lar é um acampamento – sem conforto e sem doçura. O lar não pode prendê-lo e ele procurará matar as suas longas horas de inação nas ruas. A rua provoca com freqüência o desabrochar de vícios latentes e não vamos insistir nos perigos que ela representa para o trabalhador inativo, inculto, presa fácil dos instintos subalternos que sempre dormem na alma humana, mas que o trabalho jamais desperta! (in Liberalismo e Sindicato no Brasil, Luiz Werneck Vianna, 2ª Edição, Paz e Terra, pág. 80).
Essa era a visão que a burguesia nativa possuía acerca das primeiras leis trabalhistas implementadas no Brasil. Mas além da Lei de Férias, de 1926, da lei que regulamentava o trabalho do menor e o trabalho rural, poucas eram as normas de proteção ao trabalhador que vigoraram até a década de 1930.
Os direitos trabalhistas na era Vargas
Quando Vargas toma o poder em 1930, inicia um processo de “concessão” de direitos trabalhistas, ao tempo em que procurava controlar o movimento operário. Em 19 de março de 1931 Getúlio Vargas assinava o Decreto nº 19.770, também conhecido como a Lei da Sindicalização, que representou uma tragédia para o movimento operário, pois deturpava completamente a razão da existência dos sindicatos ferindo de morte a liberdade sindical.
Até então os sindicatos eram organizações livres e independentes, cuja criação se dava pela iniciativa dos próprios trabalhadores, cabendo a esses a sua manutenção, que se dava exclusivamente pela contribuição voluntária de seus associados. Da forma como foram criados, os primeiros sindicatos livres não lutavam apenas por mais direitos trabalhistas ou benefícios de ordem econômica, mas, sobretudo, pela mudança radical da sociedade. Muitos deles se constituíam em organizações verdadeiramente revolucionárias.
A lei da sindicalização atrelava os sindicatos ao governo, pois seu funcionamento passava a depender de autorização do recém criado Ministério do Trabalho. A norma estabelecia uma série de regras sobre o funcionamento dos sindicatos, transformando-os em organismos de colaboração com o Estado e definindo uma série de atribuições de cunho assistencialista às entidades sindicais. Dessa forma, sindicatos abandonam suas atribuições políticas e passam a funcionar como centros de assistência médica, odontológica, realizando cursos profissionalizantes etc.
No ano de 1934 era promulgada uma nova constituição na qual os chamados “valores sociais do trabalho” começavam a aparecer. No capítulo destinado à ordem econômica e social, a Constituição de 1934 assim dispunha sobre a legislação trabalhista: “Art. 121. A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País”. Em seguida, a constituição estabelecia um conteúdo mínimo para a legislação trabalhista que pretendia implementar. Este conteúdo compreendia jornada de trabalho não superior a oito horas, repouso remunerado, férias remuneradas, salário mínimo, indenização no caso de dispensa imotivada, etc.
Finalmente, em 1943, através do Decreto-Lei nº 5.452, entra em vigor a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que normatiza a maior parte da legislação trabalhista no Brasil. Com a CLT, Getúlio Vargas completa seu empreendimento fascista para os trabalhadores. Inspirada na Carta Del Lavoro, de Mussolini, a CLT dispõe sobre vários direitos trabalhistas, muitos dos quais já haviam sido implementados nos últimos anos, mas também consolida sua forma de organização sindical. Nessa parte aflora seu aspecto mais reacionário.
Alguns elementos foram essenciais na organização sindical varguista: a unicidade sindical, o imposto sindical e a representação classista na Justiça do Trabalho.
A unicidade sindical ocorre no sentido oposto ao pluralismo sindical. Enquanto a criação de sindicatos não era controlada pelo Estado, os trabalhadores poderiam constituir quantas organizações bem entendessem, mesmo no âmbito de uma categoria determinada ou de uma mesma base territorial. Ao contrário do que alguns podem pensar, o pluralismo não tem como consequência a proliferação de sindicatos, mas sim o seu fortalecimento, pois, quem sobressai é o sindicato mais forte, com mais capacidade de mobilização.
Aliado à unicidade, é instituído o imposto sindical. Independentemente de filiação à entidade, todo trabalhador tem descontado um dia de salário por ano que é revertido ao sindicato. Com isso, aquele sindicato oficial tem garantida sua manutenção financeira, independentemente de filiação dos trabalhadores ao seu quadro de sócios.
Assim os sindicatos se transformam em grandes estruturas burocratizadas que assumem funções completamente alheias às suas atribuições históricas originais. A CLT estabelece em seu artigo 514, que são deveres dos sindicatos:
- colaborar com os poderes públicos no desenvolvimento da solidariedade social;
- manter serviços de assistência judiciária para os associados;
- promover a conciliação nos dissídios de trabalho;
- sempre que possível, e de acordo com as suas possibilidades, manter no seu quadro de pessoal, em convênio com entidades assistenciais ou por conta própria, um assistente social com as atribuições específicas de promover a cooperação operacional na empresa e a integração profissional na Classe;
Parágrafo único. Os sindicatos de empregados terão, outrossim, o dever de:
- a) promover a fundação de cooperativas de consumo e de crédito;
- b) fundar e manter escolas de alfabetização e prevocacionais.
A representação classista na Justiça do Trabalho, mantida até o ano de 1998, consistia no seguinte: na Justiça do Trabalho as decisões não eram tomadas por um único juiz, mas por uma junta julgadora, composta por um juiz togado (concursado) e mais dois, indicados, um pelos sindicatos patronais e outro pelos sindicatos dos trabalhadores. Isso fazia com que a organização sindical ficasse ainda mais inserida e dependente do Estado. Os pelegos disputavam de forma aguerrida uma vaga na Justiça do Trabalho em busca de privilégios distanciando-se cada vez mais das categorias que deveriam representar.
Fica então institucionalizado o peleguismo sindical. O termo pelego passou a ser utilizado para definir aquele dirigente que age como a pele de carneiro colocada sobre a cela do cavalo, para amortecer o contato com o cavaleiro. O sindicalista pelego cumpre esse papel, quando atua como amortecedor da luta de classes.
A ditadura civil militar e o retrocesso da legislação social
Mas, independentemente da burocratização imposta aos sindicatos e da perseguição praticada contra dirigentes da classe trabalhadora por Getúlio Vargas, a luta de classes não desaparece e nem pode desaparecer enquanto persistir a sociedade de classes. Como disse Marx no Manifesto Comunista de 1848, esta guerra entre as classes ora é franca, ora é disfarçada, mas é ininterrupta e só pode cessar “por uma transformação revolucionária da sociedade, ou pela destruição das duas classes em luta”.
Entre avanços e retrocessos os trabalhadores permanecem em luta. E a luta de classes novamente vai se intensificar com novo boom de industrialização no país, com o processo de urbanização e do desenvolvimento dependente que caracteriza o capitalismo do Brasil enquanto país situado na periferia do capitalismo.
O período que antecedeu o golpe de 1964 foi marcado pela polarização da luta de classes. O governo reformista de João Goulart acenava com as reformas de base e gerava forte reação da burguesia nativa, do imperialismo estadunidense e de setores das Forças Armadas. No âmbito da legislação trabalhista, naquele período foi instituído do décimo terceiro salário, causando insatisfação de setores empresariais e de sua mídia servil, como estampou a capa do jornal O Globo, de 26 de abril de 1962.
O golpe de 64 foi um golpe de classe, um golpe da burguesia contra a classe trabalhadora. Daí que a legislação trabalhista passou por refluxo naquele período. Em 1966 foi instituído o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS (Lei 5107/66), com o objetivo de pôr fim ao regime de estabilidade no emprego, garantido pela CLT. Inicialmente, a lei dispunha que o trabalhador, no ato da admissão, poderia “optar” pelo FGTS ou pela estabilidade adquirida após dez anos de trabalho, mas, na prática tal opção não existia, pois normalmente o FGTS era imposto pelo patrão.
Outra norma trabalhista oriunda da ditadura militar foi a Lei 6019/74, que regulamentou o trabalho temporário e a relação triangular entre empregado-empregador-cliente, que deu início à terceirização do contrato de trabalho. Esse foi, sem dúvida, um dos grandes retrocessos em matéria de legislação trabalhista imposto pela ditadura para atender o interesse dos grandes empresários. A terceirização favorece a rotatividade nos postos de trabalho e contribui para a desorganização dos trabalhadores, pois, embora trabalhando no mesmo local, possuem patrões diferentes, além da possibilidade da empresa interposta transferir, quando for do seu interesse, o trabalhador para outra empresa cliente.
Através do Ministério do Trabalho, o governo ditatorial interveio em inúmeros sindicatos, destituindo diretorias eleitas pelos trabalhadores. Além disso, especialmente a partir dos anos 1970 impôs uma política econômica que resultou em terrível arrocho salarial. Tais medidas provocaram uma reação dos trabalhadores que resultou no renascimento do movimento sindical a partir do ABC, fundamental para o enfraquecimento e posterior fim da ditadura militar. Esse movimento também deu ao Partido dos Trabalhadores e à Central Única dos Trabalhadores.
Em 1988 é promulgada nova Constituição que não altera de forma significativa a estrutura do Estado e do sistema econômico, mas que insere no seu texto boa parte dos direitos trabalhistas conquistados nas últimas décadas. Permanecem a unicidade sindical, o imposto sindical e a representação classista na Justiça do Trabalho. A partir de então, nota-se uma acomodação do movimento sindical que, aliado ao avanço das políticas neoliberais, traz um novo período de retrocessos em matéria de direitos trabalhistas, cujo ponto culminante foi a contrarreforma do ilegítimo governo Temer, o que será analisado na segunda parte deste artigo.
Entre avanços e retrocessos, a legislação trabalhista atingiu maior grau de avanço com o advento da Constituição Federal de 1988. No texto constitucional foram incluídos vários direitos já previstos na CLT, além de outros que passaram a vigorar a partir da data, como a jornada de trabalho de 44 horas semanais (até então a jornada era de 48 horas), o terço constitucional sobre as férias, o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, entre outros.
Porém, um dos mais importantes direitos previstos na Constituição após quase trinta anos não foi regulamentado, e certamente não será, ao menos neste sistema político. Trata-se da proibição da dispensa imotivada ou sem justa causa (artigo 7º, I, da CF). Se esse dispositivo constitucional fosse aplicado, o patrão não poderia demitir o trabalhador ao seu bel prazer. Precisaria justificar a demissão. Esse direito vigora em países como a França, e está previsto na Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Mas a globalização neoliberal, como ficou conhecido o período que toma força no início dos anos 1990, deu início a um processo de devassa sobre os direitos sociais.
A previdência social passou a ser fortemente atacada, como ocorreu no Brasil com as reformas de 1998 e 2003, e direitos trabalhistas também passaram a ser alvo de ataques por parte da burguesia. Banco de horas, negociações coletivas que implicavam em redução de jornada com redução de salários, foram alguns exemplos.
Mas nada se compara com os ataques perpetrados pelo Governo Temer e pelo Congresso Nacional a serviço da burguesia neste ano de 2017.
O primeiro ataque contra os trabalhadores se deu através da lei que ampliou as possibilidades de terceirização.
O processo de terceirização teve início com a Lei 6.019/74, que permitia a contratação de trabalho através de empresa interposta para atividades meio, especialmente na área de limpeza e vigilância. A lei dispunha basicamente sobre o trabalho temporário.
Na ausência de lei específica, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) buscou a regulamentação desse tipo de atividade através da Súmula 331, que determinava a responsabilidade subsidiária do tomador de serviço no caso de inadimplência da empresa contratada. Isso significava que caso a empresa terceirizada não honrasse suas obrigações trabalhistas, poderia o trabalhador cobrar essa dívida da empresa tomadora de serviços.
Pois bem, em 31 de março de 2017 foi aprovada a Lei 13.429, que alterou a Lei 6.019/74. A principal modificação é que a partir de agora a terceirização não é admitida apenas para as atividades meio das empresas, mas pode abranger também a atividade fim. Assim, houve uma excessiva ampliação das possibilidades de terceirização.
Digamos que uma escola, de acordo com a legislação anterior, poderia contratar através de empresa interposta serventes e vigilantes (atividades meio). Pois agora seria lícito essa mesma escola contratar professores e orientadores educacionais (atividades fim) através de uma outra empresa. Assim, no mesmo estabelecimento educacional poderíamos encontrar professores com vínculos empregatícios distintos.
Na prática, a terceirização representa, sobretudo, precarização do trabalho. Esse instrumento, ao mesmo tempo que facilita e barateia a contratação e subcontratação de trabalhadores, amplia a margem de lucro das empresas já que reduz a massa salarial. Outra consequência previsível da terceirização é a fragmentação da organização dos trabalhadores, pois possibilita a transferência do empregado pela empresa terceirizada em distintas empresas contratantes do serviço. É sabido também que os acidentes de trabalho são bem mais frequentes entre trabalhadores terceirizados do que entre os trabalhadores contratados diretamente pela tomadora de serviços.
No mês de julho, em tempo recorde, a “reforma” trabalhista foi finalmente aprovada, através da Lei 13.467/2017. Embora a vigência da nova lei tenha início em 11 de novembro, seus primeiros efeitos começam a aparecer.
Para ter uma ideia do seu significado, vejamos a seguinte notícia: segundo o portal UOL Economia[1], em notícia divulgada no dia 31/10/2017, empresas já anunciam vagas de emprego de acordo com as novas regras, aprovadas através da lei que alterou várias disposições da Consolidação das Leis do Trabalho. De acordo com a reportagem, o Grupo Sá Cavalcante estaria contratando pessoal para trabalhar em lojas dos restaurantes Bob’s, Spoleto e outros, cujas jornadas seriam de cinco horas diárias, apenas aos sábados e domingos. A remuneração: R$ 4,45 por hora. Isso significa que ao final do mês o trabalhador receberá um salário de R$ 178,00!
Essa forma de contratação passa a ser permitida a partir de 11 de novembro, quando entra em vigor a Lei 13.467/2017, que institui a chamada “reforma trabalhista”, que regulamenta entre outras matérias o trabalho em tempo parcial, cuja duração não pode ultrapassar as 30 horas semanais.
O trabalho em tempo parcial é apenas uma das alterações da CLT que flexibilizam/precarizam as condições de trabalho.
Exemplo de precarização é o contrato de trabalho intermitente. De acordo com o parágrafo único 3º do artigo 443 da CLT, “Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador”.
Através dessa modalidade o empregador convoca o empregado para trabalhar quando for do seu interesse, e pagará apenas pelas horas trabalhadas. O patrão convoca com até três dias antecedência e o trabalhador deverá responder em até um dia útil. O silêncio é considerado recusa.
A alegação da classe empresarial e dos apoiadores da “reforma” é que tais modalidades de contratação já são realizadas, mas o são de modo informal. Daí que estariam levando os trabalhadores para a formalidade. Na verdade, essa forma de contratação até hoje é considerada ilícita, pois não garante qualquer segurança ao trabalhador. O trabalhador e sua família precisam de alimento todos os dias, suas contas vencem regularmente todos os meses, mas o salário será pago quando o patrão precisar dos seus serviços.
Isso que a burguesia e seus representantes no parlamento chamam de modernização das relações de trabalho significa um retorno ao século 19.
Para bem entender o real significado da precarização, podemos recorrer ao cinema. O filme “Daens – Um grito de justiça”, uma produção holandesa de 1992, dirigida por Stijn Coninx, narra a atuação do Padre Adolf Daens na defesa dos operários da cidade industrial de Alast, na Bélgica, em fins do século 19. Entre as muitas imagens chocantes, curiosa é a cena onde vários trabalhadores – homens, mulheres e crianças – se aglomeram no portão da fábrica, na esperança de serem contratados para trabalhar naquele dia. A depender da demanda, poucos são contratados e muitos retornam desolados para os seus lares.
O trabalho intermitente ou em tempo parcial na prática permitem esse estado de coisas, mas agora de forma “regulamentada”.
Fica também permitido o “teletrabalho”, ou seja, aquele exercido fora das dependências da empresa, normalmente em casa. Nesses casos, o trabalhador não está submetido ao controle de jornada, portanto, não receberá possíveis horas extras efetivamente trabalhadas.
Até hoje o trabalhador pode fracionar as férias anuais de 30 dias, em dois períodos. As novas regras permitem o fracionamento em três períodos.
Tanto as férias como a limitação da jornada de trabalho são direitos voltados para a proteção da saúde e segurança do trabalho. Portanto, essa reforma agride não apenas a remuneração, mas também a saúde dos trabalhadores.
Um ponto que chama muita atenção é aquele previsto no artigo 611-A da CLT, também introduzido pela nova legislação. O dispositivo prevê que “A convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei”, quando dispuser sobre várias matérias, inclusive jornada de trabalho e trabalho em condições insalubres. É a chamada prevalência do negociado sobre o legislado.
Como é sabido, os sindicatos podem firmar com as empresas convenções e acordos coletivos. Até hoje, a Justiça do Trabalho não reconhece cláusulas de convenções e acordos que reduzem ou suprimem direitos previstos em lei, sendo a lei o parâmetro mínimo da negociação. Pois, agora esse patamar de flexibilização será permitido. Embora aqui haja a necessidade da concordância do sindicato, lembremos que muitas entidades sindicais existem apenas na forma, com baixíssimas taxas de filiação e, consequentemente, sem força política nas negociações coletivas. Isso sem falar no sindicato pelego, aquele que atua como braço do patrão.
Além disso, o poder de negociação é prejudicado pela própria legislação trabalhista, que permite a dispensa imotivada ou sem justa causa.
Mas a “reforma” vai além, pois em determinadas situações, inclusive no que toca a jornada de trabalho, permite-se a negociação individual, ou seja, diretamente entre empregado e empregador, sem a intervenção do sindicato. Negociação entre o pescoço e a guilhotina.
Ao todo são quase duzentas alterações na CLT, que atingem não apenas o direito material, mas também dificulta o acesso dos trabalhadores à Justiça do Trabalho. O acesso ao benefício da gratuidade da Justiça foi restringido, foi instituída a prescrição intercorrente (um processo paralisado por certo tempo pode ser extinto), o trabalhador poderá ser condenado a pagar despesas de sucumbência quando seu pedido não for acolhido, etc. A nova lei prevê ainda a possibilidade de quitação anual das verbas trabalhistas, desde que o trabalhador seja assistido por sindicato. Assim, se ele assinar um termo de quitação ao final de cada ano enquanto estiver trabalhando, ao ser demitido nada poderá pleitear na Justiça do Trabalho.
Os defensores da “reforma” partem de falsas informações para defender os seus propósitos. Uma delas é que há um excesso de ações trabalhistas e que a Justiça do Trabalho beneficia de forma exagerada os trabalhadores.
Em primeiro lugar, o excesso de ações trabalhistas deve-se ao fato de que os patrões não arcam com suas obrigações. Tanto é que grande parte dessas ações se referem ao não pagamento de verbas rescisórias e à não anotação da carteira de trabalho. Depois, estudos constatam que a Justiça do Trabalho sequer pode ser considerada benéfica aos trabalhadores.
Estudo recente do IPEA, divulgado em 30/10/2017 pela Folha de São Paulo[2], demonstra que os trabalhadores recebem em média R$ 4.500,00 por reclamação, demandas julgadas totalmente procedentes para o trabalhador representam apenas 2% do total, a fase de execução das verbas trabalhistas (depois que o direito foi reconhecido) demora em média três anos para ser resolvida. Isso tudo no quadro atual.
Em síntese o que ocorreu foi uma verdadeira contrarreforma da legislação trabalhista. A CLT foi transformada em um Código Empresarial. As relações de trabalho, caso não ocorra rápida e forte reação da classe trabalhadora, retornará aos padrões do século 19. Não foi à toa que o Ministro do Trabalho de Temer editou neste último mês de outubro portaria que dificulta a fiscalização e redefine a caracterização do trabalho escravo.
A burguesia fez verdadeira declaração de guerra aos trabalhadores. Mais do que nunca, o momento é compreender o significado da luta de classes e partir para o combate.
[1] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2017/10/31/empresas-ja-anuncia-vagas-de-trabalho-intermitente-novidade-da-reforma.htm
[2] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/10/1931318-justica-do-trabalho-e-lenta-e-pouco-efetiva-para-o-empregado.shtml
Luiz Gustavo Assad Rupp é advogado do Sinsej e militante da Esquerda Marxista. Este texto foi originalmente publicado em www.marxismo.com.br