O negócio bilionário da privatização do saneamento.
Desde 2019, a Companhia Águas de Joinville (CAJ) é totalmente de propriedade do município. No entanto, em 29 de setembro último, o prefeito apresentou na Câmara de Vereadores dois projetos que permitem a venda de ações, parcerias com o setor privado, emissões de títulos, entre várias outras medidas que escancaram as portas para a privatização. Tudo isso, sob o velho discurso de “modernização”, “governança” e “manutenção do controle público”.
A justificativa está na necessidade de atendimento das metas do Novo Marco do Saneamento, aprovado em 2020 pelo governo Bolsonaro. Essa lei autorizou e incentivou todas as formas de privatização do setor no Brasil, sob o disfarce de “universalização” do acesso à água e esgoto tratados até 2033. Mas a verdade é que o próprio modelo privado, de priorização do lucro acima do direito da população, que impossibilita o cumprimento desse objetivo.
O lucro acima da vida
Todo trabalhador sabe que só se privatiza o que dá lucro. Afinal, que investidor quer perder dinheiro? Como em todo processo de privatização, o interesse não está em melhorar os serviços, mas em capturar a fonte de lucro que, no caso do saneamento, é certo, já que se trata de água potável e esgoto tratados — uma necessidade humana básica e inesgotável.
Em março, a Companhia Águas de Joinville publicou as demonstrações contábeis de 2024. O documento apresenta uma crescente na receita líquida e um lucro de R$ 74 milhões no ano. Desse resultado positivo, 25% é destinado à única acionista da empresa, a prefeitura, como dividendos obrigatórios. Com a entrada do setor privado, ocorrerá uma óbvia pressão pelo aumento da lucratividade e dos dividendos dos acionistas privados. Quem pagará esse custo será toda a população, com queda na qualidade dos serviços e aumento de tarifas. Sofrerão também os trabalhadores, com arrochos e corte de postos de trabalho.
O que dizem os projetos apresentados?
O Projeto de Lei 296/2025 permite a venda de 49,9% das ações ordinárias (com direito a voto) da Companhia; venda de ainda mais ações sem direito a voto, mas com direito a dividendos; criação de subsidiárias e parcerias com empresas privadas; emissão de títulos no mercado financeiro (como debêntures e outros títulos de dívida) e contratações de funcionários em caráter temporário.
Já o PL 297/2025 autoriza uma Parceria Público-Privada (PPP) para implantar e operar o sistema de esgotamento sanitário da Vertente Leste, onde vive cerca de 20% da população de Joinville. O contrato, com duração de 30 anos, assegura lucros e estabilidade aos investidores privados, enquanto os riscos continuam sob responsabilidade da empresa pública.
Em outras palavras: socializam-se os prejuízos e privatizam-se os lucros. A população paga tarifas mais altas e perde o controle sobre um direito básico.
O mesmo roteiro tem sido visto em incontáveis regiões do Brasil. Para citar apenas alguns exemplos: Rio de Janeiro, com a Cedae, e em estados como Alagoas e Mato Grosso, em São Paulo, com a Sabesp, no Rio Grande do Sul, com a Corsan. Em todos os casos, as privatizações geraram aumento de tarifas, queda na qualidade do serviço e endividamento das concessionárias. Manaus é emblemática: após 22 anos de privatização, apenas 20% da cidade tem cobertura de esgoto.

O negócio bilionário da privatização do saneamento
Atualmente, o mercado do saneamento no Brasil é dominado por grandes conglomerados privados, priorizando regiões lucrativas e negligenciando localidades periféricas e rurais. Quando o Marco do Saneamento do governo Bolsonaro foi aprovado, em 2020, um dos principais argumentos era incentivar a “competitividade” em um setor até então dominado por companhias públicas. De lá para cá, uma série de privatizações foram feitas e o monopólio ficou ainda mais concentrado, só que agora de maneira privada.
Hoje, 84% dos serviços privados de água e esgoto estão na mão de quatro companhias: Aegea, BRK, Iguá e Equatorial. O saneamento privado cresceu 525% e já chega a um terço do país.
Outro pilar central do Marco do Saneamento foi o incentivo para que o setor privado investisse no setor, aliviando os cofres públicos dessa responsabilidade. Mas será mesmo que é isso que está acontecendo?
Uma pesquisa recente do Centro Internacional de Pesquisa sobre Responsabilidade Corporativa e Tributária (Cictar), encomendada pelo Sindae-BA, revelou algo que parece uma brincadeira, tamanho absurdo: empresas privadas de saneamento têm usado dinheiro público para comprar mais empresas públicas.
Como elas fazem isso?
Por meio das chamadas “debêntures incentivadas”, elas captam recursos com benefícios fiscais federais — teoricamente, criadas para incentivar investimentos na ampliação do acesso à água e ao esgoto. Mas ao invés de realmente investirem na expansão dos serviços, usam esse dinheiro para financiar mais aquisições.
Para se ter uma ideia, desde 2017, R$ 21,1 bi dos R$ 38,9 bi captados via debêntures incentivadas foram usados para pagar ou refinanciar outorgas de concessões, e não para obras. Ou seja, o Estado está subsidiando (com dinheiro público) a privatização e não a expansão do saneamento.
O levantamento mostra ainda que metade dos recursos captados na Bolsa de Valores com incentivo governamental foi parar diretamente nos cofres de empresas privadas.
E não para por aí. Na mesma lógica, está o papel do BNDES:
Em março de 2025, esse banco contava com 55,2% dos seus recursos oriundos do Fundo de Amparo ao Trabalhador. No entanto, ao invés de destinar financiamentos para que empresas públicas consigam universalizar o saneamento no Brasil, o BNDES tem sido a ponta de lança de defesa do Marco do Saneamento e da privatização do setor.
O banco não apenas ajuda a montar os projetos que vão a leilão, mas também financia boa parte deles. Desde 2018, já liberou bilhões em empréstimos e promete cobrir até 80% dos custos dos novos empreendimentos, com total prevalência dos valores disponibilizados para empresas privadas.
Ou seja, o dinheiro público é usado para impulsionar negócios privados.
Além disso, o BNDES atua na venda de títulos de dívida (debêntures) das empresas do setor, movimentando mais de R$ 13 bilhões. Agora, quer expandir sua presença no saneamento para a área de resíduos sólidos, com novos projetos previstos para leilão em 2026, reforçando o modelo que transforma serviços essenciais em oportunidades de lucro.
O caso da BRK Ambiental e como ele pode se repetir em Joinville
O estudo do Cictar toma como exemplo a BRK Ambiental, antiga Odebrecht Ambiental. Essa gigante foi uma das primeiras empresas privadas de saneamento do Brasil, criada em 2008, como uma das divisões da Odebrecht — envolvida em um dos casos mais noticiados de corrupção da história do país. Como parte de um conjunto de manobras para salvar o grupo, em 2017, a divisão ambiental foi vendida e segue controlada pelo fundo canadense Brookfield.
Hoje, ela atua em mais de 100 municípios, espalhados por 13 estados, e é um exemplo emblemático: em 2024 pagou mais de R$ 1 bilhão em juros, mais do que investiu em obras ou em sua folha de pagamento, enquanto as tarifas subiram.
De 2017, quando foi vendida para o fundo Brookfield, até hoje, a BRK dobrou seu faturamento, chegou a ser avaliada pelos seus acionistas em cerca de R$ 10 bilhões, mas registrou resultados financeiros tímidos ou até prejuízos devido ao seu alto endividamento. Como isso é possível?
Funciona assim:
- A empresa principal (BRK) pega muito dinheiro emprestado no mercado — cerca de R$ 18 bilhões em quatro anos — emitindo debêntures (um tipo de título de dívida que investidores compram e depois recebem de volta com juros).
- Com esse dinheiro, ela compra outras empresas de saneamento ou participa de concessões públicas, em vez de investir diretamente em obras e melhorias (nesses mesmos anos, investiu só R$ 7,8 bilhões).
- As subsidiárias, ou seja, as empresas menores controladas por ela em várias cidades, dão lucro de cerca de 10%, cobrando tarifas altas da população.
- Mas o lucro dessas subsidiárias é drenado para pagar os juros da dívida da empresa-mãe e os dividendos dos investidores.
Ou seja, a empresa se endivida de propósito, usa o dinheiro público e privado para comprar concessões, e depois transforma o pagamento das contas de água em renda garantida para o capital financeiro.
Todo esse endividamento tem pesado sobre os trabalhadores, os cofres públicos e os consumidores. Embora o FI-FGTS, que representa recursos dos próprios trabalhadores, detenha 30% da BRK, ele recebeu apenas 1,4% dos dividendos pagos nos últimos cinco anos — enquanto os grandes acionistas ficaram com a maioria dos lucros. Os salários e as condições de trabalho, por sua vez, não acompanharam o aumento do faturamento, e os impostos pagos pela empresa foram irrisórios.
Para a população, o resultado é desastroso. As tarifas de água e esgoto aumentaram 71% entre 2017 e 2024, praticamente o dobro da inflação do período, enquanto os serviços se deterioraram. Multiplicaram-se as denúncias por lançamento irregular de esgoto, descumprimento de contratos e falhas no abastecimento, o que levou à aplicação de R$ 50 milhões em multas e à abertura de duas CPIs, em Tocantins e Blumenau.
A partir desse exemplo, é muito importante ressaltar que os projetos de lei apresentados pelo governo Novo em Joinville permitem o conjunto de dispositivos necessários para fazer o mesmo que está sendo feito na BRK com a Companhia Águas de Joinville. Ou seja, endividar a empresa e aumentar tarifas para fazer dela um instrumento de repasse do dinheiro público para o bolso de investidores, em detrimento da expansão do saneamento. Entre esses dispositivos estão:
- Venda de ações ao capital privado;
- Emissão de debêntures incentivadas;
- Emissão de outros tipos de títulos;
- Participação em empresas públicas ou privadas da região;
- Entre outras medidas.
Empregos e estabilidade em risco
Quando se fala em privatização, a primeira preocupação dos trabalhadores é com seus empregos — e com razão. A história mostra que, sempre que serviços públicos são entregues ao setor privado, o corte de postos de trabalho e a precarização vêm junto, pois os acionistas pressionam por mais lucros.
A experiência de estatais já privatizadas — como a Eletrobras, bancos estaduais e companhias de saneamento — comprova que o aumento do controle privado traz uma regra única: reduzir custos e aumentar lucros. Na prática, isso significa:
- Planos de “reestruturação” com cortes de pessoal;
- Mais terceirização e precarização do trabalho;
- Substituição de concursos públicos por contratos temporários (mecanismo previsto no projeto do prefeito);
- Planos de demissão voluntária forçados pela pressão da gestão;
- Eliminação de qualquer perspectiva de carreira sólida;
- Demissões.
Ou seja, a privatização não ameaça apenas a qualidade e o preço do serviço para a população, mas também destrói a segurança e o futuro dos trabalhadores.
A política privatista do governo Novo
Desde que assumiu o governo de Joinville, Adriano Silva vem aplicando um projeto de desmonte dos direitos trabalhistas, precarização dos serviços públicos e ampliação das terceirizações em toda a Prefeitura – a mesma lógica nacional da PEC 32.
Para se blindar de críticas, o prefeito promoveu sua própria “Reforma Administrativa”, que custará cerca de R$ 100 milhões por ano aos cofres públicos, criando dezenas de cargos comissionados para trabalharem como cabos eleitorais e aumentando salários do alto escalão. Esse dinheiro seria suficiente para fazer a expansão do esgoto na Vertente Leste!
Na Companhia Águas de Joinville, o presidente da empresa, indicado do governo Novo, acumula experiência em empresas privadas de saneamento, como a Aegea. Esse ano, a única liberação sindical do Sintraej, sindicato que lidera a luta contra a privatização da Companhia, foi cortada. Fica claro que não foi acaso, mas uma medida calculada para tentar enfraquecer a organização dos trabalhadores justamente quando os projetos de entrega ao setor privado seriam apresentados.
Ao mesmo tempo, o prefeito Adriano Silva abraçou com entusiasmo o Novo Marco Legal do Saneamento, que empurra as empresas públicas a buscarem financiamento no setor privado para cumprir a meta de universalização até 2033. O acesso universal à água e esgoto estão atrasados há décadas no Brasil. O problema é que, a partir de tudo que explicamos anteriormente neste texto, esse objetivo não será alcançado se os recursos públicos não forem destinados à real expansão do saneamento ao invés dos lucros privados.

O papel de um prefeito que estivesse ao lado dos trabalhadores e da população deveria ser o contrário: denunciar o Marco privatista, destinar e buscar recursos públicos para garantir água, coleta e tratamento de esgoto para toda a população, inclusive para as milhares de famílias que hoje não conseguem pagar a conta. Mas a prioridade do governo Adriano Silva é acelerar a entrega da cidade ao mercado financeiro. Tudo isso, revestido de uma falsa “eficiência na gestão”, que, na prática, significa um repasse sem precedentes do patrimônio do povo para os interesses privados – não apenas na Companhia Águas de Joinville, mas em diferentes áreas da Prefeitura.
Além disso, é preciso ampliar esses valores. Nacionalmente, estima-se que seria preciso dobrar os investimentos anuais em saneamento em relação ao que tem sido feito. No atual ritmo, a sonhada universalização só seria alcançada em 2070.
Com o setor totalmente refém do mercado financeiro, o país segue distante da universalização prometida pelo Marco. Houve, em vez disso, retrocessos. O estudo Avanços do Marco Legal do Saneamento Básico no Brasil de 2025, divulgado em agosto, mostrou que o acesso à água passou de 83,6% da população, em 2019, para 83,1%, em 2023 ─ uma queda de 0,5 ponto percentual. Já o tratamento de esgoto passou de 46,3% para 51,8%.
Acesso à água potável e esgoto tratados são direitos de toda a população. Por isso, em Joinville, os sindicatos Sintraej (Águas de Joinville) e Sinsej (servidores municipais), que têm em sua direção militantes da OCI, estão unidos em uma campanha contra a privatização da Companhia Águas de Joinville e de todos os serviços públicos.
O que ocorre na Companhia Águas de Joinville é apenas uma fatia do imenso bolo da privatização do saneamento no Brasil. É preciso que a CUT, todas as centrais, sindicatos e partidos que reivindicam a luta dos trabalhadores encampem essa bandeira, exigindo:
- Abaixo os projetos privatistas 296/2025 e 297/2025 em Joinville!
- Em defesa da Companhia Águas de Joinville 100% pública!
- Água potável e esgoto tratado são direitos de todos!
- Todo o dinheiro público necessário para a universalização do saneamento, de forma pública, já!
- Pela revogação do Marco Legal do Saneamento do Bolsonaro!
- Em defesa dos serviços públicos, gratuitos e para todos!
Texto originalmente publicado em: www.marxismo.org.br
